A facilidade de comunicação no mundo de hoje levou a uma curiosa inversão. No passado, os papas eram pouco conhecidos pela maioria dos fiéis. Demorava muito para que um documento pontifício fosse traduzido e lido pelos católicos de um país (isso quando era traduzido). Os atos e o comportamento do Sumo Pontífice eram ainda menos conhecidos. A relação da comunidade católica com a hierarquia passava quase totalmente pela missa dominical e pelos párocos, algumas vezes pelos bispos. Hoje acontece o contrário: particularmente nas grandes cidades e onde parte dos católicos não é praticante, os fiéis nem têm ideia de quem seja o seu pároco – mas todos sabem que o papa é Francisco e antes dele era Bento XVI. Documentos pontifícios são lançados já em várias línguas, lidos e discutidos na grande imprensa. As ações e comportamentos dos papas são as maiores oportunidades de anúncio e os testemunhos mais conhecidos para todo o planeta.
São João Paulo II representa justamente o ponto de virada dessa tendência. Foi, como alguns bem apontam, o primeiro grande líder do mundo globalizado. Ultrapassou os limites das causas nacionais, se tornou um fenômeno de mídia em todos os países, marcou simultaneamente pessoas que o viram e que não o viram. Com ele, católicos de todo o mundo ganharam um ponto para o qual olhar, um exemplo em que se espelhar. É uma graça de Deus que os papas, agora que estão tão visíveis para o mundo, sejam personalidades tão especiais…
Mas a força desse testemunho fez com que ficássemos muito centrados em sua pessoa, sem dúvida excepcional, e olhássemos pouco para sua mensagem – que frequentemente foi reduzida e até distorcida. Com ele e, atualmente, com Francisco acontece algo parecido: quem gosta de uma declaração sua a repete, quem não gosta o ataca, mas tanto um quanto outro fazem pouco esforço para entender integralmente o que foi dito…
Dois papas semelhantes, ainda que aparentemente opostos
Essa semelhança entre São João Paulo II e Francisco merece ser mais aprofundada, pois isso nos ajuda a superar certos esquematismos. Tanto um quanto outro vieram “da periferia” da estrutura de poder da Igreja, ainda que por lados opostos. Um veio da Polônia, considerada “um fim de mundo” pelos europeus dos anos ’70; outro da Argentina, outro “fim de mundo”, agora para o mundo globalizado atual.
Ambos passaram pela experiência da ditadura e da perseguição à Igreja, ainda que um tenha enfrentado uma ditadura de esquerda e outro uma ditadura de direita. Vieram de países com grande orgulho nacional, mas com muitas dificuldades em sua história. Trabalharam no mundo laico antes de se ordenarem e demonstram grande apreço pelos trabalhadores e pelas classes populares – não nos deixemos enganar pelo fato de um ter tido que enfrentar os erros do comunismo e hoje o outro ter que enfrentar aqueles do capitalismo! Ambos buscam uma Igreja cada vez mais conformada a Cristo, ainda que tenham uma visão aguda de sua responsabilidade social e política.
Mas provavelmente o ponto em comum mais importante – e menos comentado por admiradores e detratores dos dois papas – seja sua relação pessoal com a misericórdia de Deus. Para ambos, a misericórdia é não só um tema de devoção pessoal, mas aquilo que a Igreja pode oferecer de mais valioso para o mundo atual – onde, apesar de todos os discursos de tolerância e respeito à diversidade, cada um de nós vale por aquilo que é capaz de fazer e não pelo amor que recebe (enquanto que, na lógica da misericórdia, o ser humano vale pelo amor que recebe e não por aquilo que fez de bom ou de mal).
O testemunho de Bento XVI
Por ocasião do centenário de São João Paulo II, o Papa Emérito Bento XVI escreveu uma carta que salienta justamente esse aspecto do magistério de São João Paulo II. Ratzinger foi, sem dúvida, um dos mais próximos e fiéis colaboradores de Wojtyła – por isso, seu testemunho tem um valor particular.
Muitos se opuseram a São João Paulo II dizendo que era um “rigorista”, isso é, uma pessoa que coloca os critérios morais acima das pessoas (nos Evangelhos, os fariseus seriam exemplos típicos de rigoristas). Bento XVI explica que isso não é verdadeiro justamente por causa do grande valor que Wojtyła dava à misericórdia. O seguimento rigoroso dos princípios morais não dá a última palavra para aqueles que se movem pelo amor recebido. Quem experimenta a misericórdia, quer corresponder a esse amor – e por isso procura não errar, mas sabe que não é o erro define a sua vida, mas sim o amor.
Me permito acrescentar uma ideia. São João Paulo II não era um rigorista também porque valorizava muito a experiência humana (influência da escola filosófica da Fenomenologia, à qual seguia como acadêmico). Assim, acreditava que os valores morais correspondem à experiência humana, se levada até suas últimas consequências. A indissolubilidade do matrimônio, por exemplo, não é um valor apenas porque Deus assim o deseja (o que, sem dúvida, é verdade) ou porque a sociedade instituiu uma norma, mas porque os casais serão mais felizes se viverem seu matrimônio até à morte. Essa percepção abre um diálogo imenso com a cultura de hoje, que São João Paulo II começou na sua teologia do corpo e que deve ser continuado por nós.
Conhecemos bastante São João Paulo II, mas nós e o mundo seremos muito mais felizes à medida que nos aprofundarmos em toda a riqueza de sua mensagem e de seu testemunho.
*Com informações do Aleteia.